quinta-feira, março 22, 2012

no meu silêncio,vejo-te em palavras

BREVE VIAGEM

PELA OBRA DE MARIA JOÃO FRANCO

Não é fácil falar da obra de Maria João Franco,

mesmo para quem julga conhecê-la na sua essência.

Uma obra assim pungente, abismo de verdades inenarráveis,

grita-nos, através das suas formas,

parte da história do mundo,

contendo as dilacerações mais profundas da condenação sisifiana,

tragédias que vêm de longe, dos primórdios, não sei bem donde,

revelando que a vida pode ser feita e refeita,

vezes sem conta,

nascimento ou renascimento,

obra que se constrói e desconstrói

até atingir a soma do que realmente importa:

um «tu não dizes, quanto eu te encontro»

— marca inequívoca e basilar

da incessante procura humana pela eternidade possível.

A obra de Maria João Franco possui um global efeito abstractizante,

contudo, parece interiorizar alguns indícios de uma erudição académica,

denunciando insofismavelmente,

desde logo,

a fuga à iniciação a fim de correr livremente

pela diversidade imagética de um universo plástico muito próprio,

sombrio e agonizante.

Nestas telas, entretanto,

Bacon parece espreitar

. Farreras também mas sem perder as bases da sua identidade.

Este ponto de vista tenta explicar a dificuldade

que temos em separar as influências,

vínculos que são perenes

mas que simultaneamente se afastam (ou mesclam)

pela vivência individual de uma mente peculiar — fruto simbiótico,

talvez nascido entre a diferença e a semelhança,

reflectindo na tela, apesar dos paradoxos inerentes,

uma força telúrica e estranha de cunho antropomórfico.

Mesmo quando a autora representa os nus envelhecidos

por cima da sua intocável frescura.

Maria João Franco consegue dissimular, de maneira esplendorosa e única,

a fecundidade, gerando assim, por meio de uma poesia plástica,

a sua própria e inexorável procura,

onde a semiótica persuade o fruidor a olhar para além da sua própria solidão,

do seu próprio sofrimento.

Aquilo que os nossos olhos costumam reconhecer por defeito,

é aqui, em geral,

representado por oposição,

vivenciando um espaço que

Maria João Franco preenche em pureza,

em oração,

em intimidade.


Talvez um dia

o mundo (re) conheça o notável talento desta

artista portuguesa e universal

e lhe conceda o merecido espaço,

mas, talvez, só depois de fundado um novo mundo,

após destruídas as ruidosas cidades

e falsos paradigmas da nossa sangrenta civilização.

MIGUEL BAGANHA




OBRA ENQUANTO VIDA

Foi numa espécie de silêncios ensurdecedores que Maria João Franco sobreviveu, emergiu várias vezes, e solta agora, ao expor mais uma vez, o seu grito de intransigência perante as «forças» que carreiram modos, modas, os autores e ordens em vigor, com frequentes violações do trabalho independente, para a constelação internacional, sucesso a termo, porque outras barreiras selectivas e obscuras existirão neste século.Desde longa data que Maria João Franco foi dando prioridade a um discurso matérico e de alguma violência, proferido entre uma abstracção de teor expressionista e a convocação rochosa do corpo humano — ou do corpo simplesmente. Passo a passo, o seu imaginário recebia impressões graves do exterior, da experiência exógena, acabando por devolver às mãos da pintora fragmentos amassados na devida maturação, coisas endógenas, reanimações poéticas da morte e da vida. Tais verdades interiores, sempre em transformação mas nunca em ruptura, contrariavam o terreno minado pela cultura urbana, formações espúrias, filiação nos concursos rápidos ou guerra dos prémios. Com a sua arte reaprendemos algumas versões de valor porventura romântico, até de raiz na memória dos clássicos problematizantes, a par de uma afirmação expressionista (da mesma mágoa) assente mo testemunho de outros renascimentos e no sentido da revolta. A manipulação do gesto, abarcando logo grande parte do campo, entra depois no domínio da pasta, matéria acumulada sobre esboços líquidos. Alguns dos quais parecem despontar propositadamente nas zonas onde a autora preferiu aderir à transparência e por vezes, quando acha necessário conter a catarse, a decisão de aplicar mansas velaturas sobre troncos antropomórficos duros, brutais, escultóricos. Essa aparente moderação lírica avança com um brilho baço sobre aquelas carnações decepadas, de largas texturas e aparência lítica.Esta busca, algo arriscada, passa por matérias e cores sobretudo acinzentadas, exprimindo de facto a pedra da escultura que evoca o corpo, é um trabalho quase contínuo, quase sisifiano, princípio e fim de um todo que também nos pertence, embora sempre nos escape.Anunciada assiduamente pela sua diversidade, o percurso coerente de Maria João Franco parece abalado, sem que as suas bases se ressintam, dado que esse ponto de vista implica diferença, a simbiose entre diferença e semelhança, o que, apesar de todos os paradoxos, confere uma força inusitada a estas massas onde algum fio de sangue aflora, e mesmo nos casos em que a autora representa (na boa memória académica) os nus falsamente envelhecidos na sua intocável frescura.A forma plástica, em Maria João Franco, recupera do espaço da memória, da própria dor, com obstinação, a ideia e a imagem do corpo, mesmo quando este não se aperta entre os limites do campo e se projecta gestualmente no espaço. A liberdade do fazer, no acesso a qualquer metodologia e materiais próprios, não isenta o formador de pensar quais as razões da sua luta, quais as razões do seu objectivo, o que implica a criação ou aceitação de limites ou regras. Maria João sabe perfeitamente essa condição, porque a condição sobra mesmo quando traída com talento. Neste caso, a pintora está sobretudo ao serviço de si mesma, legando a alguém, a verdade da obra ser um destino de vida.
ROCHA DE SOUSA _2010



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